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Ganha juízo e não desiludas a cozinheira

O país fechou na semana do “Paleozóico 2020”. A prova foi cancelada, adiada, adiada outra vez e este Domingo lá saiu para o monte.

E eu fui, porque não tenho juízo nenhum.

Remontava a 2 de fevereiro de 2020, a data da minha última participação numa prova de Trail.

Desde essa altura, foi o que se sabe, a parte do meu cérebro que gere a participação em trails deu curto-circuito e apagou uma data de ficheiros, fazendo com que as emoções do meu dia oscilassem entre a nostalgia, a euforia e o desespero.

Começou pelo nervoso miudinho nos intestinos ao acordar. Felizmente, o ficheiro “Imodium” estava intacto e foi instalado com sucesso.

Tinham desaparecido da minha memória os alertas de “não adianta dar gás no alcatrão, vai tudo afunilar na serra.” E lá fui todo contente a deixar gente para trás no centro de Valongo, para depois vê-los passar rumo a Santa Justa.

A Santa Justa, como todos os outros santos, ajuda a descer e eu até queria chegar cedo a casa para o costumeiro assado de Domingo, regado por um verde gelado. 

Nos depósitos da mochila não levava verde gelado, mas levava isotónico que estava a custar a sair. O ficheiro “Não se estreia material novo em dia de prova” estava danificado e demorei quase 10 quilómetros a tentar perceber como funcionavam as minhas novas garrafinhas.

Arranca a tampa e bebe pelo gargalo. O trail manda desenrascar.

Sou freguês assíduo do Paleozóico e aquele primeiro abastecimento em Couce é o meu “Triângulo das Bermudas”. Chego sempre lá armado em campeão, saio de gatas. A euforia dos primeiros quilómetros ia pelo rio abaixo,

E gatinhei pelo Trilho dos Pescadores e subidas seguintes. Comecei a pensar na desistência na Ponte de S.Simão antes de abordar a subida, já com o Elevador na cabeça, mas foi aí que rebentou tudo. “Erro 404”.

O calor já era muito e a progressão lenta. Custava a engolir os líquidos nas garrafas, o pó que levantava do chão e a noção do que ainda tinha pela frente. No meio da loucura comentei com um colega “o Elevador nem custa tanto como isto!” Burro!

Fui novamente empurrado para Couce pela Santa Justa e demais quórum divino. Chegado ao segundo abastecimento, sentei-me a olhar para o Elevador. A sombra era fresca, havia água e era só dizer “quero desistir”.

Ao longe a absurda subida era pontilhada por pequenos pontos coloridos, praticamente imóveis. De casa chegavam mensagens de incentivo. Ficava tarde para o assado, mas eu não podia desiludir a cozinheira.

“Tem de ser.” Afirmação estúpida que proferimos nos piores momentos. Bastava dizer “quero desistir”, mas eu disse “Tem de ser.”

Os pontinhos no Elevador continuavam aparentemente imóveis. Ia subindo e olhando mais para trás do que para a frente.

Ainda estava a tempo de ganhar juízo. “Ficheiro não encontrado.”

…ou nem tinha saído de casa. Na verdade, acho que nunca faria trail na vida. E, como desmiolado que sou, avancei. Lentamente. De todas as vezes que subi o Elevador, nunca o fiz assim, a parar de cinco em cinco metros, a refugiar-me em pequenos arbustos à procura de sombra ou de uma ténue aragem. Nem das vezes em que cheguei lá já com 40km nas pernas.

Os outros faziam o mesmo. Eram mais os que paravam do que os que progrediam. A água nos reservatórios estava intragável. Sabia que ia desidratar mais cedo ou mais tarde. O sol torrava a pele. Tudo a correr bem, portanto.

Mas eu subia. “Alerta de segurança. O seu disco está infectado.”

A dada altura, um colega desfaz-se em vómitos, tive um primeiro impulso de o acompanhar, mas avancei. E parei. E voltei a parar.

Gatinhava mais do que andava, foi praticamente a gatinhar que cheguei ao topo e aí sucumbi.Vómito atrás de vómito, não me segurava em pé. Um colega gritou por ajuda. Veio alguém da organização e acalmou-me. Fez-me deitar e respirar fundo. Sentia o corpo voltar ao normal, as pernas a quererem mexer. Na verdade, de pernas estive sempre “bem”, mas nós não corremos só com as pernas.

Desci até Valongo praticamente a passo, tentando correr a espaços, já com os circuitos todos queimados. O cérebro abria e fechava ficheiros desconexos, só acalmando no chuveiro instalado no tanque a poucos metros da meta.

Ainda por cima, o speaker engana-se no meu nome. A Flor Madureira fez-me um abençoado ctrl+alt+del.

No regresso a casa, só conseguia beber água em goles muito pequenos. Mas o assado marchou e o verde gelado também. Não desiludi a cozinheira!

O Eduardo diz que “o pai ganhou a corrida”, a Teresa diz “mas não desististe e chegaste ao fim!”

Há coisas que não mudam, como a força, a determinação e a perseverança que são necessárias… para conseguir tirar as meias de compressão no fim da prova.

Foto: Nuno faria

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António Pinheiro
António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

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