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Um diabético em Berlim

O nosso corpo parece não ter limites. Mesmo quando se padece de doenças como a diabetes, é possível correr e mesmo fazer maratonas. Leia a crónica de Oscar Lima, um médico diabético brasileiro de 30 anos que correu e terminou a maratona de Berlim.

Em novembro do ano passado começou o planejamento do que seria minha primeira maratona. Estava correndo há pouco mais de um ano, e minha esposa e meus três cunhados há menos tempo ainda. Na época, um deles contou animado sobre um colega que havia corrido a Maratona de Nova York e tivemos a idéia de fazer essa prova em 2007.

No início do ano, começamos a treinar com Heleno Fortes, que é um dos técnicos de Belo Horizonte com maior experiência em maratonas. Posteriormente, tivemos problemas para viabilizar nossa ida aos EUA naquela data e optamos por correr a Maratona de Berlim. Não achamos a mudança ruim; afinal de contas, Berlim é uma das cinco maiores maratonas do mundo e famosa por ser rápida (é ainda não sabíamos que o recorde mundial seria novamente batido naquela prova).

Correr uma maratona, para mim, era um desafio ainda maior que para os outros. Sou diabético tipo 1, daqueles que tem que tomar várias injeções de insulina por dia. Muitas dúvidas surgiram em minha cabeça ao longo do ano. Que quantidade de insulina deveria tomar durante a corrida? De quanto em quanto tempo deveria tomar o gel de carboidrato? De quantos em quantos quilômetros deveria medir minha glicemia (a quantidade de glicose no sangue) durante a prova?

Os médicos fornecem alguma ajuda, mas, infelizmente, não conseguem dar respostas precisas a estas questões. Cada diabético precisa ver como seu corpo se comporta durante a corrida e, através de tentativas durante os treinos, descobrir o que fazer no dia da prova. Eu, por exemplo, aprendi uma grande lição na Meia do Rio. Até então, eu não media minha glicose durante as provas e nunca havia tido problemas em corridas de 10 km.

Na Meia do Rio me senti muito cansado nos últimos quilômetros e apresentei uma vertigem súbita após a linha de chegada. Quando fui levado para o posto médico, ainda estava na dúvida se tinha passado pelo tapete da chegada (eu tinha!). Os médicos mediram minha glicemia e viram que ela estava muito alta (350 mg/dl), fato que é perigoso em uma corrida.

Esse problema me fez pensar em desistir da maratona. Pensei que estaria me arriscando muito correndo uma distância tão longa. Esse pensamento me fez sentir doente, coisa que nunca havia acontecido antes. Sempre levei uma vida muito próxima do normal. Trabalho, me alimento corretamente, me divirto, viajo, me exercito de forma muito semelhante a uma pessoa sem diabetes.

Decidi, por fim, que iria correr a maratona, mas que seria mais cuidadoso. Passaria a carregar meu aparelho de medir a glicemia e minha insulina de ação rápida durante as corridas mais longas.

Após exaustivos treinos durante o ano, finalmente fomos para Berlim. A cidade é muito bonita e interessante, e o povo acolhedor e educado. O que não estava bom era o tempo. Choveu todos os dias que estivemos lá. O friozinho eu já esperava (em torno de 12°C), mas a chuva atrapalhou um bocado o lado turístico da viagem.

No dia da prova, porém, São Pedro deu uma trégua e só pegou chuva quem terminou a maratona com mais de cinco horas. Levei tudo o que precisava dentro de uma pochete de neoprene: os sachês de carboidrato em gel, a insulina de ação rápida, o aparelho de medir glicemia e algumas cápsulas de sal. Na manhã do dia da prova, fiz uma refeição leve e tomei metade da quantidade de insulina de ação lenta que costumo tomar em dias normais.

Logo antes da largada, medi minha glicemia e vi que ela estava alta, provavelmente devido à ação da adrenalina que estava sendo liberada em grande quantidade naquele momento de expectativa. Apliquei um pouco de insulina que tinha levado comigo e aguardei pelo sinal da largada. Tive grande surpresa, poucos segundos antes da largada, porque começou a tocar a música Poeira da Ivete Sangalo.

Enfim, soou o sinal de largada e partimos sob a revoada de milhares de balões coloridos. Rapidamente, atingi o ritmo que havia planejado de cinco minutos por quilômetro. Tudo corria maravilhosamente bem. Milhares de pessoas na rua torcendo, diversas bandas de música no percurso tocando os mais variados ritmos, e a enorme festa dos corredores.

Náuseas inesperadas. Comecei tomando um sachê de carboidrato a cada 4 km. Isso pode parecer muito para um corredor sem diabetes, mas ingerindo menos que isso, certamente minha glicose iria cair. Medi minha glicemia a cada 10 km. A partir do km 20, porém, tive que lidar com um problema completamente inesperado, comecei a sentir náuseas. No início começaram de forma leve; mas foram se intensificando ao longo da corrida.

Esperava enfrentar os mais variados problemas durante a maratona, mas nunca havia apresentado náuseas durante corridas. Comecei a andar um pouco quando chegava aos postos de água (até porque os copos são abertos e correndo se derrama mais água do que se bebe). No km 30, as náuseas se agravaram e passei a alternar períodos de caminhada com períodos de corrida. Diminuí a quantidade de carboidrato ingerida, devido ao enjôo, o que acabou me causando um outro problema que foi a queda de minha glicose sanguínea.

Queria inicialmente terminar a maratona em 3h30; depois passei a desejar terminá-la em 3h45; depois 4h00; e por fim, queria apenas terminar. E terminei. Após muitos quilômetros de corrida e vários de caminhada, finalmente cruzei o portão de Brandenburgo. Gastei 4h21, quase uma hora mais do que havia planejado. Mas, apesar de tudo, não estava triste. A sensação de receber a medalha por ter vencido os 42 km é maravilhosa. E, se a sensação é especial para todos, é ainda mais para mim que tive que enfrentar o diabetes também.

Ainda estou tentando entender o motivo de meu problema gástrico. Talvez tenha sido o excesso de carboidrato em gel, talvez tenha sido as cápsulas de sal. Ambas as coisas já haviam sido testadas nos treinos longos sem eu ter apresentado qualquer problema.

Espero que meu relato incentive as pessoas portadoras de diabetes ou de outros problemas a enfrentar os desafios e não se acomodarem. Se ficaram pensando que pretendo parar com as provas longas estão muito enganados. Já planejo correr a Maratona de Porto Alegre no ano que vem. Até lá, terei bastante tempo para fazer novos ajustes na forma como controlo o diabetes durante a corrida e, quem sabe, consigo até baixar meu objetivo de 3h30. Minha esposa Adriana completou em 4h56, enquanto meus três cunhados fecharam em 3h12 (Frederico), 3h29 (Guilherme) e 4h30 (Leonardo).

*Oscar Lima, 30 anos, é médico e corre pela equipe Go Bananas, de Belo Horizonte.

A publicação deste artigo foi feita com a autorização e gentileza da Revista Contra-Relógio (Brasil).

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Vitor Dias
Vitor Dias
Autor e administrador deste site. Corredor desde 2007, completou 65 maratonas em 18 países. Cronista em Jornal Público e autor da rubrica Correr Por Prazer em Porto Canal. Site Oficial: www.vitordias.pt

3 COMENTÁRIOS

  1. Olá!
    Fiquei não só impressionado com a tua história como também fiquei esperançado de porder fazer o mesmo. Tenho 29 anos e fui diagnoticado com diabetes tipo 1 à cerca de 1 mês.
    Sou uma pessoa muito activa e pensei que nunca mais voltaria a praticar desporto regularmente.

    Entendi que agora vou ter de ter mais cuidados mas que ainda vou conseguir fazer muitas das coisas que fazia antes.
    E vejo também que é possivel correr a maratona mesmo com este problema.

    Boa sorte e boas corridas

  2. Amigos,

    Certamente que entre nós há vários “vencedores” dos 42,194 kms com o mesmo problema. Um deles, meu companheiro em alguns treinos e provas,Jorge Coelho,embora já com 50 anos, saboreou o prazer de terminar tão mítica distância.
    Força, força!

    Abraço

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