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Veio o Governo e expropriou-me a Resiliência

Veio o Governo e expropriou-me a ResiliênciaGosto de palavras. Dalgumas, até, mais do que de pessoas. Tenho umas que trato como se fossem da família pela tonelada de simbolismo que carregam no lombo – Sublevação, siempre! – e outras que não troco por dinheiro nenhum, que nunca me canso de lhes escutar a musicalidade (vou amar-te sempre, Paralelepípedo).

Uso-as como ato de insubmissão, como no caso da Bifurcação, que tirando eu e a senhora que vive dentro do GPS já mais ninguém usa. Mas, na maior parte das vezes, recorro a elas para dar nota artística à conversa. Descarado exibicionismo lexical que me leva a dizer “arrojo”, sabendo de antemão que as pessoas vão perceber “arroz”.

Sei bem que não sou dono delas, mas guardo-as comigo como se tivesse papel passado e tudo. Tenho um quintal amplo, cheio de palavras de estimação, onde elas costumam brincar umas com as outras, a correr de um lado para o outro ou entretidas a fazer frases. Mas, como tudo o resto que é bom na vida, um dia isto tinha de acabar.

E começou a acabar agora, quando há dias dei pela falta de uma. Atenção, não uma qualquer, mas logo a minha favorita. Andei às voltas e mais voltas, fui ver se encontrava buracos na cerca, se tinha deixado a cancela destrancada. E nada! Até que, já farto de revirar as redondezas, voltei para casa, liguei a televisão para entreter os nervos e lá estava ela. 

A minha querida Resiliência, ao colo da gente do governo e a ser passada de mão em mão, como se fosse um bichon maltês fofinho e felpudo. Fui a correr telefonar à advogada, que disse que não, não senhor. Ela estava comigo há uns anos, mas eu nunca a fui registar à Junta e – pior – mesmo que fosse minha, com licença e boletim de vacinas em dia, em Estado de Emergência os governos tinham o direito de a expropriar.

– Raios e coriscos! – praguejei eu, mais para usar a palavra “Coriscos” do que para outra coisa.

Que me perdoem as outras palavras de companhia, mas a Resiliência sempre foi a minha predileta. Pelo feitiozinho que a tornava singular: uma espécie de teimosia sofisticada, que descai só para o lado do bem. Era – desculpem-me lá as peneiras – a minha imagem de marca, que sobressaia naqueles momentos em que eu me agarrava a um rumo e não o largava. E depois diziam “és teimoso!” e eu respondia: “não, sou resiliente”.

– És quê?

– Vai ver ao Google!

E iam, só que vinham de lá aos tropeções, que a Resiliência adora pregar rasteiras a quem lhe quer meter a coleira. Uns diziam resilência, outros resilhência. Poucos lhe acertavam no nome à primeira. Ou à segunda.

Mas, pronto, tanto amor, tanta estima, para quê? Para agora vir o governo e ficar-me com ela!? Pior do que isso, levá-la lá para tão longe, para os gabinetes, e depois tratá-la como se fosse uma marca de telemóvel ou de pensos higiénicos.

Até parece que já os estou a ver, todos engravatados, à volta de uma mesa, ligados por videoconferência a uma cáfila de especialistas em branding e rebranding: 

“Que diz de Resistência, soutor!”; “Ai, é muito forte!”; “Mas então e se for Superação?!”, “Se calhar… mas lembra-me um bocado aquelas frases de autoajuda”. “Ah, já sei! Resilhência!!! Que dizem de lhe chamarmos “Programa de Resilência?”.

Mas se fosse para o bem comum, ainda era como o outro. Não me custava tanto, se ao menos eu visse a Resiliência a levar amparo aos famintos e aos empobrecidos ou fornecer nutrientes fiduciários a famílias e negócios. Agora, conhecendo a matilha de colarinho branco como a conheço, é só uma questão de dias até reduzirem a pobre da Resiliência à condição de criada de servir da alcateia de empreiteiros e consultores que a anda já a rondar.

Agravaram-se as suspeitas mal voltei ao palavril – o meu canil, para palavras – e dei pela falta de mais outra. O Desbarato, que é da família do desperdício e da ruína, e sempre foi mais ovelha negra do que palavra de estimação. Até aposto que nem foi preciso requisição civil. O Desbarato há de ter ido daqui direito a Lisboa, para se apresentar voluntariamente em São Bento ou no Terreiro do Paço, oferecendo-se logo ali para dar uma mãozinha – ou patinha – aos Costas e aos Leões, a ver se os três juntos conseguem dominar a Resiliência que, mais cedo ou mais tarde, há de fazer jus ao nome, e querer rebentar com a trela do poder.

Pelo sim pelo não, vou mas é ali prender mais um cadeado à casota da Sublevação, porque quando ela souber o que o Desgoverno anda a fazer à Resiliência, não há açaime que a segure.

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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