Autor:
António Pinheiro / Janeiro 31, 2021 / Publicado em
Passa-se isto assim assim 
Silvana e Ernesto tinham acabado de fazer amor. Os corpos nus, suados, levemente cobertos pelos lençóis de seda.
Ao contrário do que era habitual, Ernesto estava tenso, olhar distante, pensativo.
Que tens? – perguntou Silvana
É tudo isto…
O quê? Nós?
Não és tu… é o Mundo…
O COVID? O confinamento? O Chega?
Pior… muito pior…
É o facto de ser casada?
Já disse que não és tu…
Estás a deixar-me preocupada…
Beijou-o delicadamente e esperou que falasse.
Então, ele desabafou:
São as palavras… as pessoas usam repetidamente as mesmas palavras… Pior! Usam-nas de forma errada!
Edite Estrela? És tu?
Isto é sério, Silvana! Toda a gente diz “assertivo” quando, na verdade, quer dizer “acintoso” ou, até mesmo, “malcriado”. E “guerreira”? Tira-me do sério. Qualquer publicação sobre, ou para, uma mulher tem que ter sempre “és uma guerreira”. Guerreira era a Xena, com o seu soutien de inox e com quem eu fantasiava solitariamente aos domingos à tarde. Agora, guerreira, é qualquer influencer com gripe.
Ernesto… sabes que semântica nunca foi a minha praia…
Também tu? Porque não dizes “a minha especialidade”, “o meu forte”, “a minha predilecção”? Porquê a praia?
Desculpa querido, mas não achas que estás a exagerar? Eu sei que está a ser um ano atípico…
Incomum, anómalo, anormal, inabitual, invulgar, inusual, raro, singular, particular, diferente, insólito, estranho, inusitado, inesperado, desabitual, extraordinário, excepcional…
Tem calma, amor! Quando isto passar…
Já faltava essa! Não queres falar também no “novo normal”?
Basta… vou-me embora.
Vais? Não te esqueças de “cumprir todas as normas em vigor”.
Sabes, Ernesto… eras o meu chão, o meu pilar, mas és simplesmente doido!
Ah! Ah! Ah! Também és daquelas que tem mais pilares que uma Catedral Gótica!
Por um momento, por apenas um momento, devias sair dessa tua zona de conforto!
Eu não quero sair da minha zona de conforto! Aliás, eu ainda não a encontrei e, acredita, quando lá chegar, não saio mais!
Silvana terminava de se vestir. Ernesto olhava pela janela. Um silêncio desconfortável.
Bem, Ernesto… Liga-me quando estiveres melhor. Já estou atrasada e está, literalmente, a chover calhaus.
Ernesto pegou na pistola e deu-lhe, literalmente, um tiro.
Sobre António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.