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Entrevista com João Garcia

Entrevista com João GarciaJoão Garcia não precisa de apresentação para a maioria dos portugueses. E se é reconhecido é por mérito próprio. Pratica há várias dezenas de anos uma atividade ainda pouco conhecida no nosso país. Ser alpinista e ter apostado toda a sua vida neste desporto, fez com que seja neste momento uma das dez únicas pessoas no mundo que conseguiu escalar os 14 picos mais altos do planeta (superiores a 8.000 metros) sem recurso a oxigénio artificial. Nós corredores temos o privilégio de o encontrar em provas de montanha com alguma regularidade. Convidamos 6 amigos, todos eles ligados ás corridas e a longas distâncias, e com as suas perguntas elaboramos uma entrevista exclusiva.  Uma entrevista feita por corredores, a um corredor e para corredores. Obrigado ao João Garcia e aos nossos 6 convidados.

Fernando Andrade

Quero aproveitar para felicitar o João Garcia pelos seus heróicos feitos lá nas alturas, para onde, parecendo solitário, tinha um todo um povo a acompanhá-lo. Parabéns João Garcia.

Com a participação nas provas de Trail, visa apenas o desfrute da natureza ou pode constituir uma boa forma de preparação para a conquista das grandes altitudes?

 

Ambas as coisas. Também porque descobri que o Trail em Portugal é uma “família” muito interessante de gente oriunda de outras atividades que tal como eu, junta o “útil ao agradável”.

Que semelhanças existem entre a fadiga a baixa altitude (provocada pelo esforço) e a fadiga a alta altitude (provocada pelo ar rarefeito)? Se cá em baixo, voltsse à normalidade pelo repouso, como é que é lá em cima?

 

A mais de 8000 metros de altitude temos cerca de 20% do oxigénio de maneira que o nosso desempenho físico é sensivelmente um quinto que temos em Lisboa ou Porto. A estas altitudes extremas, mesmo quando paramos mantemos uma cadencia respiratória terrível. Por vezes, ao andar no limiar da relação pernas-respiração, se derrapo na neve e porque não quero cair, tenho de efetuar um esforço físico extraordinário que faz com no minuto seguinte experimente uma falta de ar assustadora.

Qual foi o maior “cagaço” que apanhou? E como é que se safou?

Foram vários sustos nestes últimos vinte e tal anos. Sem dúvida que o maior foi  no Evereste em 1999, expedição que como sabem correu muito mal. Mas frequentemente tenho uns sustos que consigo controlar com uma atitude positiva, força de vontade e usando o medo para calibrar o bom senso e tomar as boas decisões.

Luis Sousa Pires

Nos momentos mais difíceis de uma escalada, e nas ocasiões, que sempre existem, de alguma fraqueza mental e psicológica, como consegue arranjar “energias positivas” para as superar?

Geralmente, os momentos mais difíceis e arriscados são no dia que saímos do último acampamento e rumamos ao cume para regressar. São cerca de 15 a 20 horas de esforço ininterrupto e avançamos muito lentamente o que provoca vontade de desistir. E é nesse momento que me lembro que se desistir, resolvo o problema mas vou apenas adiar o meu objetivo. E no final, ao tentar novamente, vou ter de repetir tudo novamente, assim vou arriscar mais a minha vida. Para fazer algo é preferível fazer bem á primeira, senão “o barato sai caro”.

Tenho curiosidade em saber – se é que isso é possível – em que medida as tão longas exposições a temperaturas extremamente baixas, afectam a saúde e, inclusivé, a “esperança de vida”.

Na minha opinião, tudo que é levado ao extremo não é bom para a saúde. Mas aqui, o que é preocupante é a altitude extrema e o ar rarefeito, não tanto as baixas temperaturas. Essas conseguem-se resolver com equipamentos térmicos adaptados.

Pensando que as provas de Trail, ao qual aderiu recentemente, comparadas com as aventuras a que está habituado, são autênticas “brincadeiras de criança”, que motivação tem para nelas participar?

O Trail para mim, funciona como o Triatlo. Serve apenas para ter objetivos a médio prazo e para me manter em forma. Como o melhor treino para a montanha é na montanha e eu vivo em Portugal, já há muitos anos que aderi a outras modalidades para realizar o trabalho cardiovascular. Depois complemento-os com idas periódicas ás montanhas mais próximas como os Pirineus ou os Alpes para o trabalho específico.

Só a título de curiosidade, há mais de 25 anos que inconscientemente praticamos Trail. Lembro-me de realizar percursos pedestres de cerca de 40kms, efetuados em montanha, com mochilas pesadas e botas de trekking que terminávamos sempre a correr nas descidas. No fundo sempre houve um bichinho competitivo dentro de muitos companheiros da montanha. E para mim, isso já era Trail…

Paulo Rodrigues

Se é que é possível escolher, qual a montanha que mais gostou de escalar?

Cada montanha é uma montanha e mesmo a repetição da mesma escalada nunca é igual. Mesmo assim, relembro com orgulho a expedição ao Kangchenjunga em 2006 pois foi uma viajem com alguns imprevistos graves, dificuldades acrescidas que consegui resolver. Até ao ultimo momento não sabia se íamos conseguir de maneira que ao atingir o topo, regressei com uma satisfação redobrada.

Escalar montanhas, é a sua principal actividade?

Pode dizer-se que sim se bem que para sobreviver tenho outras atividades paralelas.

O que acha a sua família desta actividade, no que diz respeito ás ausências, aos riscos, etc.?

Da mesma forma que eu me fui habituando que o risco ia aumentando á medida que ambicionava ir mais alto, a família nos últimos 25 anos também se foi habituando a que as saídas para a montanha eram de 2 semanas, depois passaram a ser de 4 semanas, depois 8…

João Meixedo

O que é que, exactamente, o motiva a realizar cada uma das suas aventuras? O que é que o move?

O desafio, o querer superar-me a mim mesmo. Esta é uma atividade que partilha da mesma base filosófica dos outros desportos… queremos marcar mais golos, correr mais rápido ou mais longe, … mas no final queremos ir mais além. Eu quero ir mais alto ou por uma vertente mais difícil.

O que é que a sua família e os seus amigos sedentários pensam do rumo que traçou para a sua vida?

Não sei bem, muita gente inicialmente pensou que era mais um “conquistador do inútil” e que era algo passageiro… mas agora, acho que reconhecem que para mim, o alpinismo é mais de um desporto, é uma forma de viver e estar na vida.

Conta nos seus livros que em altitude, por falta de oxigenação, ficamos com pior capacidade de discernimento e que, por vezes, tomamos opções erradas, como aliás já lhe aconteceu. Pergunto se treina para que aconteça o contrário, isto é: se prevê eventuais situações limite e respectivas soluções acertadas para que na eventualidade delas virem a acontecer tome a opção que planeou como correcta e não aquela que lhe parece de momento (um pouco como quando a meio de um pesadelo temos a noção de que estamos a sonhar e decidimos acordar para acabar com aquilo)

O que diz é correto mas quando temos falta de discernimento não há nada a fazer. Apenas uma garrafa de oxigénio pode funcionar como uma “boia de salvação”. Esta opção está fora de questão pois para mim a utilização de oxigénio artificial é batota, tanto a usar como de reserva. Acho que com mais de 30 expedições a altitudes extremas, já adquiri mais experiência do que a maioria das pessoas e que eventualmente conheço o meu organismo nesta situação,  podendo reconhecer algum sintoma anómalo e a maneira de evitar o pior. Mas insisto, aqui e em lado nenhum, o risco zero não existe. E se não existisse, passava a não ter o mesmo interesse!

Pedro Amorim

Nas últimas horas das suas ascensões, acima da chamada zona da morte, quais são as frases (que possa partilhar) que ecoam na sua mente? São frases/pensamentos  que se repetem com frequência, ou a mente salta de tema para tema sem que possa dizer que há pensamentos recorrentes?

Nessa situação, avanço penosamente a força de vontade. São 3 respirações e mais uma passada. Outras 3 respirações e mais outro passo de maneira que nesta situação estou extremamente ofegante e só consigo ouvir o meu coração a bater na minha cabeça.

Para um português de 40 anos, saudável, em boa condição física, que corre meias maratonas em 1:45 e que faz trekkings regulares no Gerês e na Serra da Estrela, qual o desafio mais exigente para o Verão de 2012: correr uma maratona de estrada de 42km ou subir o Monte Branco (pela via do Gouter por exemplo)? Como compara, para esse indivíduo, o grau de dificuldade física de cada um dos desafios?

Sem falar do aspeto psicológico que o risco efetua sobre alguns atletas, eu acho que subir ao Monte Branco é um desafio maior do que correr uma Maratona em menos de 3h30. Começa logo com a carga horária do dia de cume, umas 7h de subida e outras 6 de descida, carregar uma mochila que atrofia a caixa torácica e botas de 1kg em cada pé… Também porque para subir aos 4807m do Monte Branco sem habituação previa a altitude, a falta de ar nas horas finais antes do cume, não são tão violentas a nível de pernas numa Maratona mas são mais duras a nível cardiovascular e respiratório qua na Maratona abaixo das 3h30.

A privação de oxigénio que os catorze oito mil representaram, e que menos de uma dúzia de pessoas saudáveis aguentaram, tem paralelo apenas no que sentem os muitos doentes com insuficiência respiratória grave padecendo de falta de ar, nomeadamente crianças e velhos. Em que medida é que a sua experiência de enfrentar a falta de oxigénio o aproxima dos doentes com insuficiência respiratória? Como vê a importância do oxigénio na biosfera terrestre?

O oxigénio é a nossa prioridade instantânea sem o qual não sobrevivemos mais do que alguns minutos. O exercício físico que exige mais oxigenação a nível celular, desenvolve a longo termo a capacidade respiratória facilitando a nossa adaptação a altitude. Esses mecanismos da  adaptação a altitude não se efetuam quando vivemos uma vida inteira junto ao mar de maneira que acho que a Humanidade deveria nascer a baixa altitude, viver a media altitude e ao chegar a velhice, regressar a baixa altitude. Assim, acho que haveria menos casos de insuficiência respiratória 🙂

Filipa Vicente

Que tipo de alimentos leva para uma escalada?

Depende, no acampamento base a 5000 metros de altitude e até a terceira semana de expedição, conseguimos efetuar uma alimentação relativamente semelhante a que temos aqui no nosso dia a dia com legumes e verduras frescas. Depois e com o consumo não reposto, a alimentação torna-se limitada e pouco variada. Entre acampamentos e nas subidas mais técnicas, levo barras energéticas, chocolate e biscoitos.

Sabendo que muito fica no campo base, o que leva obrigatoriamente consigo de comida/bebida durante a subida?

Em altitudes superiores á do campo base, a minha prioridade é a hidratação. Em altitude o ar é muito seco e isso, conjuntamente com a rarefação do oxigénio, faz com que se desidrate mais do triplo. Neste cenário, a minha prioridade é beber e não tanto comer pois essa alimentação, como disse anteriormente é feita a base de barras energéticas, biscoitos e chocolate. Depois nos acampamentos, derreto neve e bebo na forma de chás, de sopas instantâneas e de bebidas com aditivos isotónicos. Bebo cerca de 5 litros de líquidos e nem por isso urino mais do que cá em baixa altitude.

Tem ideia do dispêndio calórico de uma escalada como a do Kilimanjaro ou ainda mais, do Monte Evereste?

Não sei bem e depende do individuo. Mas calculo que no meu caso seja de uns 3500Kcal/dia e de 4500Kcal/dia respetivamente. Acima dos 4000m de altitude, por diversas razões, eu perco a partir da terceira semana cerca de 1kg de peso por semana. Numa expedição de mais de 7 semanas é normal regressar com menos 4 kg de peso de massa magra. Para ter uma ideia, em 1999 eu regressei do Evereste com menos 12 kg de peso…

Vitor Dias

Como acha que os portugueses o vêem? Como um grande desportista, por um aventureiro, por um “maluco” ou tudo isto junto?

Por falta de cultura desportiva alpina em Portugal, acho que ao principio eu era visto como um “maluco”. Depois evoluiu para um aventureiro e agora e para alguns, para desportista. O projeto que concluí no ano passado de escalar as 14 montanhas do planeta com mais de 8000 metros de altitude sem recurso a oxigénio artificial, tomou 17 anos da minha vida. Só a partir de 1999 é que comecei a ter alguma visibilidade mediática de maneira que acho que nestes últimos 12 anos houve uma evolução neste sentido de educar a sociedade para este tema.

O que pensa fazer quando abandonar esta actividade?

Não vou abandonar esta atividade. O alpinismo tem sido a minha vida de maneira que tenho apenas de adaptar o nível das escaladas a minha capacidade tendo em conta a idade. É exatamente como na corrida…

Ao longo de todos estes anos, e ao andar por locais quase sempre gelados, nota já diferenças no que respeita ao aquecimento global? Se sim, qual a verdadeira medida que deveria ser tomada para o evitar?

Sim, sem dúvida e com tristeza que tenho testemunhado o degelo de diversos glaciares do nosso Planeta. É um assunto muito complexo pois, por diversas vezes se tem provado que atualmente, os interesses económicos da nossa civilização sobrepõem-se a harmonia que deveríamos ter com outras espécies e com a sobrevivência a longo termo do Planeta Terra.

Muito obrigado João por ter aceite dar-nos esta entrevista que servirá certamente de incentivo à prática de exercício físico, um dos objetivos principais deste site.

Todos aqueles que pretendam conhecer o João Garcia, terão essa oportunidade no evento que o Correr Por Prazer está a organizar no próximo dia 7 de janeiro. Toda a informação relativa ao mesmo pode ser consultada no seguinte link: Correr Por Prazer na Serra de Cuca Macuca.

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Vitor Dias
Vitor Dias
Autor e administrador deste site. Corredor desde 2007, completou 65 maratonas em 18 países. Cronista em Jornal Público e autor da rubrica Correr Por Prazer em Porto Canal. Site Oficial: www.vitordias.pt

6 COMENTÁRIOS

  1. Foi um privilégio ter participado nesta entrevista ao grande João Garcia, herói das alturas. As suas sábias respostas “com o saber da experiência feito” contribuem muito para o enriquecimento daqueles que, como eu, não faziam uma pequena ideia de como era lá em cima. Assim, já fazem. Obrigado ao João pelas respostas e ao Vitor pelo convite.
    Mas acho que o João não me convenceu a experimentar aquelas altitudes onde até o ar está “racionado”.

  2. Fantásticos testemunhos, numa entrevista superiormente conduzida a sete mãos. Eu próprio tive já o privilégio de Entrevistar o João Garcia e é na qualidade de jornalista apaixonado por esta coisa das corridas que tiro o chapéu ao grupo pela forma como soube colocar questões dentro da sua área pessoal e/ou profissional, “obrigando” o João Garcia a expôr-se nas suaS múltiplas vertentes. Sem dúvida, uma das grandes peças do ano e um ponto alto na história do Correr por Prazer.
    Um abraço.
    JOAQUIM MARGARIDO

  3. Espetacular. Parabéns ao Correr Por Prazer por esta fantástica entrevista e obrigado ao João Garcia pela anuência à mesma. A ideia de colocar os corredores a fazerem perguntas deu na entrevista que qualquer orgão de comunicação social gostaria de ter nas suas páginas. Isto sim é serviço público de qualidade e sem que os nossos impostos contribuam para tal. Bem haja a toda a equipa que trabalha neste site que é sem dúvida o melhor site de corrida em Portugal. Bom Natal. J Amendoeira.

  4. Obrigado Vitor pela oportunidade que me deste e agradecer ao João Garcia pela forma directa e simples como respondeu ás perguntas!
    Um Feliz Natal para todos!

  5. De registar a sabedoria do João em passar testemunhos lúcidos, como aquele, que perfilho, de adaptar o nosso nível de actividade de acordo com a cronologia das idades: no desporto a cronologia é marcante. Para mim, que tive a felicidade de disfrutar de uma vida desportiva “activa”, com nível de resultadoos “satisfatórios”, sem ter conhecido qualquer tipo de moléstia impeditiva, respeitar a nossa vida cronológica com vivacidade, é um gozo! Por isso,adiro muito,todos os que seguem a “pegada” do racional do qb. O João, com o mediatismo que a sua vida desportiva justamente conseguiu, caber-lhe-á, continuar…como Mestre, deverá passar os seus ensinamentos e simultâneamente os conselhos, assim como o respeitar da nossa cronologia, para que possamos gastar solas na longevidade…quiçá centenários a correrem a maratona, a “trekkar”…

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